Amar uma estranha igual a nós

A confusão faz parte da reinvenção

Afonso Rocha Pereira

6/15/20222 min read

“Sufoco.

Comecei a atacá-la pela indiferença.

Ela começou a atacar-me cada vez mais.

Por vezes, sem de nenhum de nós o saber.

Outras vezes, olhava para mim com resignação. Com um sorriso resignado, que o nosso amor se havia esvaziado e convertendo-se num amor somente cordial. Sempre, também a mim, me fez confusão pensar que podíamos ter caído nessas coisas que os outros casais sem exceção iam caindo – acho que na verdade tentámos vezes demais ser melhor que os outros e, vezes tão poucas, melhores para nós.

Mesmo assim, havia (e era) um sorriso diferente dos outros… e nessas alturas, por mais que aquele olhar transparecesse uma certa aceitação da relação com um destino marcado por imperdoáveis verdades, era o sorriso de um amor profundo, de admiração e orgulho. Íamo-nos omitindo, como todos o fazemos a certa altura para podermos fingir que certas coisas que nos tocam não importam, mas claro, sem querer, ou melhor sem poder… ser de outra maneira qualquer.

Aqueles ataques significavam que me amava.

Embora não (me) soubesse amar.

E fui, e fomos, andando na tentativa de omnipotência que há nas mentiras que contamos a nós mesmos, como se o controlo fosse algum tipo de prazer maior que o prazer de amar e ser amado. (Sabíamos lá).

Ela queria que o brilho do meu olhar-lhe ressuscitasse a sua vontade de me amar. O que era uma impossibilidade crónica com todos aqueles ciclos arrítmicos na ânsia de querer que eu a desejasse à força, como se fosse eu o triste culpado de ela ter perdido o que de si havia de belo. Talvez tenham sido os meus olhos, que já não conseguiam ver. Nem a ela, nem a mim. Foi tão tarde que se tornou cedo, quando percebi a simplicidade do que complicara. Tratavam-se apenas, ou talvez também, pedidos para que fosse eu a dizer Adeus.

Disse-lhe Adeus.

Queria eu dizê-lo? Porque o disse? Achei que ela queria que eu dissesse Adeus? Ou já não suportava o sufoco das suas projeções e realidades do mal em mim? Também eu fui sendo como ela. E ela como eu, estávamos tão indiferenciados, que já não sabíamos onde é que um começava e o outro acabava.

Assim foi. Mas nesse dia, nada aconteceu… Nem para mim nem para ela, nunca lhe perguntei, mas sei-lho pela forma como saiu de casa.

Se estivermos atentos à nossa caixa negra somos capazes de falar sem dizer nada. Foi como se ambos soubéssemos o destino da coisa à qual já não sabíamos se era uma relação ou uma relaxação. Foi como se tudo se mantivesse igual. Não foi um dizer Adeus, foi reparar que já o tínhamos dito. Há muitos anos.

Porque amámos? Ou porque fomos covardes?

Não sei. Talvez ambos. Importa?

Sabíamos a dor da separação.

Mas não sabíamos a dor de reparar um irreparável tarde demais.

Nenhum de nós sabia a dor de amar um/a estranho/a igual a nós.

Tarde tornou-se, cedo de mais.

E agora? E agora é um logo se vê.

Mas marcámos um encontro.

Nós. Eu e a vida.”